quinta-feira, 21 de julho de 2022

EU CONTENHO MULTIDÕES



Quando Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura, li algumas reportagens que definiam o cantor como uma voz da esquerda. Não ousaria refutar sua influência na contracultura dos anos 60 – embora ele próprio o faça –, mas apenas alguém que conhecesse muito pouco do repertório dylanesco conseguiria defini-lo tão facilmente. 

As reportagens me trouxeram à memória uma cena de Chaplin, em que Carlitos tenta fechar uma mala abarrotada de roupas. Com alguma peça sempre escapando, ele encontra uma saída simples: cortar tudo o que ficou para fora. Mais ou menos o que é feito ao se analisar Dylan a partir de classificações abreviadas. 

Boa parte da crítica parece tomar este ou aquele fragmento de sua discografia como amostra de um todo coerente, desculpando-lhe os desvios infelizes. Na direção contrária, Todd Haynes fez a mais sincera biografia do artista, justamente ao abandonar a ideia de uma identidade única e linear. "Não estou lá", como o título previne, é uma obra biográfica que dispensa minúcias factuais. Algo como Proust, que, em seu célebre romance "Em busca do tempo perdido", ficcionou histórias e personagens de seu tempo para que a essência deste se tornasse mais evidente.

Como boa deleuziana, não acredito que a subjetividade seja a expressão de uma verdade interior. Penso, antes, que o “eu” decorra do encontro com outros, e do modo como cada um desses atravessamentos incide sobre nós. No filme de Haynes, temos seis atores que desempenham o papel, não de Dylan em fases distintas, mas de diferentes encontros que possivelmente o constituíram como artista: Woody Guthrie e o folk; Rimbaud e a poesia; as guitarras elétricas; a conversão ao cristianismo; a experiência no cinema com Pat Garrett e Billy The Kid; o casamento com Sara Lounds e outras relações amorosas. 

Sendo assim, "Não estou lá" bem poderia ser pensado como uma cartografia, delineando percursos, apontando rotas – regidas muitas e muitas vezes pelo acaso. Este, que, na minha opinião, é a grande constante do universo dylanesco: a vida é um lance de dados e o apostador, sua máxima expressão. 

"Lilly, Rosemary and the Jack of Hearts" – uma das minhas canções favoritas – traz um desses personagens típicos de sua narrativa: o Jack of Hearts, elemento de instabilidade num arranjo a princípio estável. Temos aqui uma cidade decadente, dominada por Big Jim, que controla, além da mina de diamantes, o destino de duas mulheres, Lily e Rosemary. 

Ainda no início da música, Lily aposta e puxa uma carta, esperando que a rainha complete a trinca com o par que já tem em mãos. A jogada, no entanto, traz um valete. Assim como no pôquer, a chegada do Jack of Hearts desequilibra as expectativas do jogo. Essa figura, que surge na porta do cabaré como um valete de copas, mexe com os anseios das personagens e faz com que suas apostas mudem: é que os riscos são mais tolerados quando nos deixamos guiar pelo desejo. 

Num trecho, a canção diz: “Sabia-se em todo canto que Lily tinha o anel de Jim. E nada jamais se colocaria entre Lily e o rei. Não, nada, exceto talvez pelo Valete de Copas.” Em outro, temos: “Rosemary embebedava-se, olhando seu reflexo na faca. Estava cansada de atenção, cansada do papel de esposa de Big Jim. Ela tinha feito muita coisa ruim, e uma vez até tentou suicídio. Queria fazer pelo menos uma coisa boa antes de morrer. Ela olhava para o futuro, cavalgando no Valete de Copas.” Em ambos os casos, o Jack of Hearts extrapola sua dimensão humana e encarna a própria pulsão do desejo.

Assim, as peças mudam de lugar seguindo um princípio de incerteza. Contrariando as probabilidades, o poderoso Big Jim não mata o Valete, mas acaba morto pelas mãos de Rosemary, que é condenada à forca. Lily fica sozinha, e não se sabe o que acontece àquele que movimenta o destino destes que ali estão (vivos ou mortos) – o Jack of Hearts simplesmente não está lá (e o que mais se poderia esperar de algo ou alguém que seja objeto de desejo?).

Uma coisa aprendi, primeiro com Nietzche e depois com Dylan: se a vida é um lance de dados, é imperativo saber jogar. “A estrada é para jogadores, melhor usar o bom senso. Pegue o que juntou por coincidência”,  nos diz "It’s all over now, baby blue". Aliás, um bocado de coisas por aqui acontece por “uma simples reviravolta do destino”,  e nada parece mais natural do que o acaso, se pensarmos menos em canções ou em períodos específicos, mas no conjunto da obra.

Acho que, por conta disso, Bob Dylan (assim como Kafka) é um sujeito que me faz rir com bastante frequência, mesmo em músicas dramáticas (ou especialmente nelas). Em "Spirit on the water", ele diz à amada que quer acompanhá-la ao paraíso, mas não pode, por ter “matado um homem ali atrás”. Já em "If you see her, say hello", o narrador pede ao seu interlocutor: “Se a vir, diga ‘oi’, ela deve estar em Tânger”.  Quem, no mundo (além de Dylan), poderia pensar em Tânger como o lugar mais provável para um encontro casual? 

As aleatoriedades não estão restritas ao âmbito poético, mas se estendem à sua biografia. Em "Cronicles", o imprevisível impõe-se constantemente nos episódios narrados por Dylan, numa comédia de erros quase shakespeariana. Em certa ocasião, por exemplo, ele passa por um longo período estagnado como artista. Ao entrar num barzinho qualquer de blues, vê um cantor executar uma técnica que considera incrivelmente inspiradora. Isso o motiva a fechar uma série de shows, porém sofre um acidente e perde o movimento das mãos. Em casa, sem poder ao menos tocar, cria o álbum "Oh Mercy!" quase todo em poucos dias, escrevendo as canções num tipo de “descarga criativa” e jogando-as na gaveta, onde ficariam até que o cantor se animasse em gravá-las.

É importante dizer que "Oh Mercy!" foi considerado por muitos críticos como o indício de que Dylan retornava à boa forma, depois de um período renegado por boa parte de seus fãs. Durante praticamente toda a década de 1980, o cantor fez álbuns que não agradaram nem à crítica, nem ao público ou mesmo ao próprio artista. 

Tenho um amigo que insiste na ideia de que os verdadeiros admiradores de Dylan deveriam esquecer essa fase, jogar os discos fora e suprimir a “década perdida”. Para ele, é como se o cantor “não estivesse lá” em "Saved", "Empire Burlesque" ou "Down in the Groove". Mas ele estava – seguindo o mesmo princípio de incerteza que igualmente regeu a produção de obras-primas como "Blood on the Tracks", "Desire" ou "Highway 61 Revisited". 

Bob Dylan, ao que tudo indica, é regido pelas leis quânticas e não pela física clássica. Como uma partícula subatômica, se conhecemos sua localização atual, não podemos precisar seus movimentos futuros. Se mapeamos seus movimentos de uma forma geral, não entendemos uma localização pontual. É por isso que há muito tempo desisti de dar sentido a sua obra, menos ainda a sua vida.

Às vezes, me divirto acompanhando fóruns sobre o cantor e debates sobre suas canções. Num deles, discutia-se o significado de alguns trechos de "Changing of the Guards", uma destas músicas que, como "Visions of Johanna", parece antes criar uma paisagem do que narrar uma história. Alguns diziam que a letra era autobiográfica e retratava diferentes momentos de sua vida. Outros defendiam que ela dialogava com eventos históricos. 

Um trecho específico chamava atenção: “Eles rasparam sua cabeça/ Ela estava dividida entre Júpiter e Apolo/ Um mensageiro chegou com um rouxinol negro/ Eu a vi nas escadas e não pude deixar de segui-la/ Segui-la descendo até a fonte onde levantaram seu véu”.  Um dos comentadores disse que claramente se tratava de Joana D’Arc (e ainda estabelecia uma conexão com Visions of Johanna), ao que um sarcástico retorquiu: “Não há dúvidas de que ele esteja falando de Britney Spears!” Já o próprio Dylan, quando perguntado sobre a canção, respondeu: “Significa algo diferente toda vez que a canto. ‘Changing of the Guards’ tem mil anos. ”

O mesmo talvez se possa dizer de Dylan. Ele tem mil anos e significa algo diferente a cada momento: “Sou um homem de contradições, sou um homem de muitos humores/Eu contenho multidões” , diz um trecho da música "I Contain Multitudes", cujo título foi inspirado num verso consagrado de Walt Whitman. Esta canção, de 2020, foi a última lançada pelo artista até agora. 

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