domingo, 7 de novembro de 2021

SOMOS TODOS MARÍLIA


Vocês sabem, não sou fã de música sertaneja. Quando soube da morte de Marília Mendonça, a única informação que encontrei nas gavetas da minha memória era a de que ela era gorda. Só soube, aliás, que a cantora havia emagrecido ao ler os comentários de pesar em diferentes grupos: muitos lamentavam sua morte, logo agora que estava magra! 

Achei no mínimo curioso que tantas pessoas, obviamente sem perceber, consideravam que a vida de Marília valia mais na magreza do que na gordura. É que normalmente presumimos que alguém é mais feliz dentro da normalidade instituída. A última postagem da cantora, no entanto, falava com humor sobre o sacrifício de se recusar quitutes mineiros e se contentar com uma maçã. 


Eu, como Marília, passei a vida cindida entre o desejo de comer e o de emagrecer. Hoje, vertentes feministas lutam contra a ditadura estética, defendendo que todos os corpos são bonitos. Ainda que seja importante romper com padrões inalcançáveis de beleza, sinto que uma parte essencial do debate é deixada de fora: nossa relação com a comida.

Entre a luta por ser magra e o orgulho de ser gorda, não nos questionamos de onde vem a compulsão por alimentos pobres em nutrientes e ricos em calorias. Estamos habituados a picos de alegria proporcionados pela gordura, pelo açúcar, pelo sal, pelos condimentos. Só que, quanto maior o salto, maior a queda. E logo nos perguntamos quando teremos nosso próximo pico de prazer.

Fazer regime, malhar como um condenado ou assumir os quilos a mais não nos liberta desse ciclo perverso. Tampouco é simples que um indivíduo estabeleça para si novos padrões alimentares. Percebi isso aos 19 anos, quando me tornei vegetariana, e até hoje não encontrei caminhos para uma mudança mais significativa: também busco meus picos de prazer na gordura, no açúcar, no sal, nos condimentos.

Não sei se vocês já perceberam, mas nossa vida gira em torno de comida. É ela quem estabelece horários importantes dentro da nossa rotina, além de definir muitas das nossas interações sociais. É ela quem nos consola em momentos difíceis, embora também seja uma ótima companhia em comemorações. 

E não há problemas nisso, afinal seria de se esperar que um elemento tão central para nossa sobrevivência tivesse um lugar de destaque em nossos arranjos sociais. O problema não é comermos, mas o que comemos, e, volto a dizer, nosso prato não é apenas uma escolha individual. Vá ao supermercado e observe as prateleiras. Ou vá a um restaurante e peça o menu. Você pode dar uma volta de carro e mapear os estabelecimentos gastronômicos da cidade. Se não quiser sair de casa, simplesmente busque propagandas de comida na internet.

Somos habituados desde criança a essa montanha russa gastronômica, e é difícil encontrar por aí alimentos que não se enquadrem nessa lógica. Em geral, comidas nutritivas, equilibradas e gostosas são caras ou de difícil preparo. Mas vale termos a consciência de que nosso padrão alimentar não é o único do mundo e que está longe de ser o melhor.



Uma vez, li um texto do Zizek em que ele comentava alguns filmes contemporâneos cujo tema era o apocalipse. E, em meio a sua análise, o filósofo observava que é mais fácil concebermos o fim do mundo do que a mudança de hábitos extremamente nocivos a nós e ao mundo. Sempre penso nisso quando busco transformar algum aspecto da minha vida. Ainda que eu fracasse (e eu fracasso), sei que o mais difícil mesmo é tentar mudar, porque qualquer mínimo deslocamento em um comportamento padrão pode desencadear uma série de outros dilemas.

Por tudo isso, senti uma imensa empatia por Marília Mendonça, quando vi as mensagens e reportagens que elogiavam sua autenticidade em ser gorda ou sua força de vontade em ser magra. Provavelmente, ela também viveu presa nessa armadilha, mesmo que tentasse sair. Ali eu me senti um pouco Marília. Acho que todos nós somos.


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