quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O GRANDE MASSACRE VERDE E AMARELO DOS GATOS



Nas manifestações do dia 7 de setembro, apenas uma coisa me surpreendeu: a presença de Fabrício Queiroz, em um ato no Rio. Logo ele, sempre tão sumido! Tantas e tantas vezes perguntamos “Cadê o Queiroz?”, e ei-lo aqui: batendo continência para um Roberto Jefferson de papelão. 

Simpático, Queiroz teve seu dia de subcelebridade e até fez selfies com fãs. Sim, tem gente que é fã do Queiroz – o que para mim soa tão esquisito quanto um Roberto Jefferson de papelão. 

Eu já tenho grandes dificuldades de entender a existência de fãs de Bruno e Marrone, Simone e Simaria, Gustavo Lima ou Luan Santana. Mas, mesmo que Queiroz e Jefferson tenham provavelmente tanto talento musical quanto esses cantores sertanejos (isto é, nenhum), há um problema adicional: ambos são réus confessos em casos de corrupção. 

O que leva, então, os bolsonaristas a exortarem essas duas figuras? Pergunta que se junta a outra que tentamos entender há mais tempo: por que ainda tem gente que apoia Bolsonaro?

Não tenho provas, mas vou compartilhar com vocês uma convicção: acho que os reacionários não querem voltar para o armário. Quase 20 anos tolhidos por uma mentalidade progressista, eles querem ser livres para reivindicar uma sociedade desigual. E Bolsonaro não apenas expõe esse desejo até então emudecido, como mantém uma bolha em que se pode ser um canalha sem qualquer constrangimento.

Isso me lembra um episódio dos Simpsons, em que Bart ganha um elefante. Uma vez que o animal come descontroladamente, Homer propõe amarrá-lo para que ele não se mexa e assim não sinta fome. Lisa se opõe, ao que Homer responde: “Tudo é cruel segundo você. Mantê-lo acorrentado no quintal é cruel, puxar o rabo dele é cruel, berrar no ouvido dele é cruel. Tudo é cruel! Então me perdoe se eu sou cruel!”

 


Imagino que, para um bolsonarista, viver num contexto de proteção às minorias seja mais ou menos como para Homer (o cara que literalmente vendeu sua alma ao diabo por uma rosquinha) ter que conviver com Lisa, uma menina intelectualizada, politicamente correta, feminista, vegetariana e fã de jazz.

Presumo essa mentalidade, a partir de uma nuvem de reclamações esparsas que ouvi em diferentes situações ao longo dos anos: é chato não poder fazer piada com nada engraçado (não se pode ser machista, racista ou homofóbico, tudo é cruel); é duro ser empregador num país com tantos direitos trabalhistas; é necessário ser desigual quando o cobertor é curto; é injusto ter suas chances diminuídas pela política de cotas; a morte de favelados é o custo da segurança pública.

Em 2018, quando me perguntei pela primeira vez o que se passava na cabeça dos eleitores de Bolsonaro, um amigo me relatou a seguinte história, na tentativa de formular uma teoria. Um conhecido seu vivia às turras com um gato vadio, que cismava em invadir sua casa. Parece que o rapaz tentou repetidas vezes espantar o intruso, mas o bichano insistia em voltar. Por fim, nosso protagonista chegou – não sei por que vias – à conclusão de que a única saída seria matar o gato. (A esta altura, começo a achar Homer até gentil com o elefante.)

Iniciou-se aí o seu impasse, pois não queria ser ele o carrasco. Tampouco havia alguém que pudesse agir em seu lugar. A situação se tornava tragicômica, na medida em que o drama do fulano não era propriamente a morte animal, mas o seu próprio papel na história como psicopata. Meu amigo relacionou, assim, os bolsonaristas a esse cara, que queria uma solução simples, porém violenta, e principalmente, sem culpa ou culpabilização.

 Na época em que escrevi minha tese de doutorado, um dos livros que me serviu de referência foi "O grande massacre dos gatos", de Robert Darnton. Nele, o historiador relata o seu espanto ao se deparar com um documento do século XVIII que narrava com grande diversão a matança indiscriminada de gatos por funcionários de uma tipografia. Em geral, tendemos a interpretar o outro (e isso inclui o passado) dentro da mentalidade que nos constitui e assim sentimos dar conta de um pensamento que não o nosso. Mas o riso bizarro e inexplicável frente à crueldade (dos tipógrafos, de Homer ou dos bolsonaristas) nos leva a pressentir que alguma coisa ainda nos escapa.

O convite à canalhice conduzido por Bolsonaro e aceito por seus seguidores - este grande massacre de gatos metafóricos - nos choca, nos inquieta e nos lembra que há uma parte do Brasil que nós, progressistas,  ignoramos por um longo tempo. Uma vez, num webinar, o sociólogo Marco Ruediger afirmou que a esquerda subestimou a cultura da direita que prevalesce em nosso país. Estabelecemos uma ideia específica do que seria (ou deveria ser) o Brasil, desconsiderando as relações profundamente reacionárias que fundam muitas de nossas bases sociais.

Decerto essa constatação não exime a bolha bolsonarista, de sua podridão, de seus crimes reais ou imaginados. Mas nos impõe também alguma responsabilidade ou ao menos um desafio. Você já deve ter escutado uma frase insuportável da Yoko Ono, que diz: "Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto é realidade." Yoko disse isso porque é japonesa. Se fosse brasileira, saberia que por ora não há qualquer perspectiva de o Brasil arcaico sonhar junto com as Lisas Simpsons da vida. Resta-nos, portanto, pensar como viver essa divisão quando acordarmos do pesadelo.   



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